Em termos editoriais a banda desenhada nunca viveu um período tão interessante, com expansão (em número e qualidade) de autores nacionais, mas sobretudo com o trabalho da Levoir e G. Floy Studio em termos de obras de autores estrangeiros, oferecendo uma excelente relação qualidade/preço. Não que todas sejam excelentes, mas ajudam a criar um fundo de qualidade elevada, a partir do qual a excelência é mais fácil de reconhecer, e tem outro valor. Apesar de não apreciar o anglicismo das questões de “género”, uma linha interessante relaciona-se com séries protagonizadas por mulheres, escritas e desenhadas por homens, editadas pela G. Floy Studio. Obras que procuram, não só contar histórias convincentes, mas surpreender com misturas de referências que podem não ser óbvias, e que enriquecem (ou baralham) o rumo e ritmo narrativo, e as expetativas do leitor.


 É nesse ponto que o sexo (género) das protagonistas é (também) relevante, embora utilizado de maneiras distintas. “Fatale”, série escrita por Ed Brubaker com desenhos de Sean Philips (já no 5º volume), “contamina” o policial negro clássico dos anos 1950 (num ambiente muito bem recriado por Philips) com um fundo sobrenatural, centrado numa mulher que evoca poderes demoníacos e trás desgraça aos homens que por ela se fascinam. Ou seja, embora seja tipificadora do ponto de vista do género, Brubaker trabalha o conceito de “mulher fatal” com uma literalidade inovadora. Já em “Velvet” a referência são os agentes secretos dos anos 1970, com o estilo de intriga internacional em ambientes luxuosos a ser, mais uma vez, muito bem captado pelo desenho de Steve Epting. Se se sente a sombra de Sean Connery em “007” (embora a história deva mais a John Le Carré), o facto de a protagonista ser uma agente que é obrigada a sair da “reforma” atrás de uma secretária, para onde um passado menos claro (e, sem dúvida, o seu género) a tinham atirado, funciona como elemento disruptivo em termos do modo como Velvet é encarada pelos seus colegas/adversários, e como se supera num mundo masculino; como um pormenor irritante que não se deixa ignorar.


Mas a série que vale mesmo a pena conhecer neste contexto é “Jessica Jones/Alias”, concebida pelo argumentista Brian Michael Bendis. Aqui a referência são os super-heróis, sendo a protagonista um membro reformado dessa confraria, com uma história conturbada, que agora ganha (mal) a vida enquanto detetive privado, evitando dar nas vistas e utilizar os seus poderes. No fundo trata-se de tentar abordar a existência de super-heróis de uma forma “realista” na sociedade, na sequência dos notáveis “Watchmen” de Alan Moore e Dave Gibbons ou “Astro City”” de Kurt Busiek e Brent Anderson, mas num ambiente menos grandioso ou mitificador. Ao contrário de outra boa série de Bendis com contornos similares (“Powers”), as referências aos universos de heróis de licra são secundárias e exigem que o leitor construa sobre elas (como na história sobre a vida pessoal secreta do Capitão América, por exemplo). Em “Alias” as histórias policiais cruzam-se com o questionar do mundo dos super-heróis, e do papel das mulheres nesse mundo. São, mais uma vez, um elemento perturbador, um grão de areia que tanto pode desaparecer no cenário, como ocupá-lo momentaneamente, mudando as coordenadas. Há ainda um elemento forte de relações falhadas e abusivas (fulcro da série televisiva homónima), nada habituais neste tipo de obra. O desenho de Michael Gaydos privilegia a tom soturno e os argumentos sempre palavrosos (no bom sentido) de Bendis, mas sobretudo alerta para o facto de “Alias”, caminhando numa fronteira entre géneros e preocupando-se com personagens que recusam ser tipificadas, nunca ser bem o que parece ser.

Jessica Jones: Alias 1. Argumento de Brian Michael Bendis, desenhos de Michael Gaydos. G. Floy Studio. 216 pp., 15 Euros.
Velvet 1: Antes do Crepúsculo. Argumento de Ed Brubaker, desenhos de Steve Epting. G. Floy Studio. 128 pp., 10 Euros.
Fatale. Argumento de Ed Brubaker, desenhos de Sean Philips. G. Floy Studio. 128 pp., 10 Euros.